O novo governo se iniciou com inúmeras polêmicas a respeito da relação entre Estado e Igreja. Manifesta nos discursos do Presidente Jair Bolsonaro e de alguns de seus ministros, uma concepção institucional que não vê qualquer problema na íntima relação entre o poder político e as doutrinas religiosas. Tal concepção, contudo, revela graves problemas da perspectiva constitucional.
Em carta escrita à Associação Batista de Danbury em 1802, Thomas Jefferson concebeu aquela que se tornou a mais significativa metáfora sobre as relações entre Igreja e Estado em uma democracia constitucional. Na carta, o pai fundador norte-americano escreveu as seguintes palavras: “Contemplo com reverência soberana o ato em que o povo americano declarou que os legisladores jamais deveriam ‘elaborar leis instituindo uma religião ou proibindo o seu livre exercício’, assim construindo um muro de separação entre Igreja e Estado“.
Tais palavras, fruto de uma construção institucional desenvolvida desde que as guerras religiosas devastaram a Europa nos séculos XVI a XVIII, influenciaram todas as democracias constitucionais. Os direito à liberdade de consciência e à liberdade religiosa se tornaram sinônimo da autonomia individual. Ao indivíduo, e apenas a ele, compete decidir os valores morais e religiosos que guiarão sua vida.
E a maior garantia da liberdade individual é justamente o muro que separa Igreja e Estado. Mas será que esse muro está forte o suficiente para aguentar o Brasil de 2019?
A concepção dos eleitos: um Estado laico cristão
Logo no primeiro discurso proferido na condição de eleito, o Presidente Jair Bolsonaro afirmou que seu governo seguiria “os ensinamentos de Deus e ao lado da Constituição”. Antes mesmo do pleito eleitoral, o sempre polêmico Presidente afirmara o seguinte: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. o Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude”.
O ponto de vista do novo governo a respeito das relações entre Estado e religião se tornou ainda mais manifesto em declarações da Ministra dos Direitos Humanos, da Família e dos Direitos da Mulher, Damares Alves. A Ministra chegou a dizer que “a igreja deve governar”. Em outro momento — anteriormente à posse no cargo, é verdade — a Ministra defendeu que as igrejas perderam espaço para a ciência por terem deixado “a teoria da evolução entrar nas escolas”, no que foi foi rebatida pelo Ministro Marcos Pontes em uma boa defesa da separação entre ciência e religião.
Ainda que “pinçadas” nos mais diferentes contextos, as declarações apresentam um cenário preocupante para o constitucionalismo. Revela-se uma concepção de relação entre Igreja e Estado incompatível com o pluralismo marcante de nossa democracia.
Mas que concepção é essa? Pelos discursos examinados e pelas diversas manifestações do governo até aqui, verifica-se a presença das seguintes características da relação entre Igreja e Estado defendida pelos atuais ocupantes dos principais cargos da República brasileira:
(1) equiparação entre crenças religiosas e a racionalidade pública;
(2) a legitimação do discurso político com base em uma religiosidade específica (a cristã) em detrimento de outras;
(3) a institucionalização de uma crença religiosa particular; e
(4) a equiparação institucional entre o discurso religioso e o científico.
Tais premissas solapam qualquer possibilidade de construção democrática dos inevitáveis contatos entre Estado e Igreja.
Não há liberdade religiosa sem separação entre Igreja e Estado
É certo que, consoante a descrição sociológica de Niklas Luhmann, todos os sistemas sociais são igualmente autopoiéticos. A religião, o direito e a política, em uma concepção moderna, seguem seus códigos internos, fundados em distinções, valores e em descrições da realidade incomensuráveis. Daí se segue a heterarquia que rege os vários sistemas sociais, uma vez que cada sistema responde a sua própria lógica interna.
Do ponto de vista de cada sistema, torna-se inevitável observar os demais sistemas à luz de sua própria lógica interna. Quando um economista observa o direito, enxerga uma estrutura de custo-benefício, uma estrutura normativas que impõe incentivos positivos e negativos à atividade econômica. Quando o jurista observa a economia, enxerga ali uma realidade a ser regulada com vistas a concretizar exigências normativas particulares como a justiça distributiva, bem como a efetivação de direitos sociais como saúde e educação.
Mas o direito não apenas gera obstáculos à atividade econômica. É por meio de normas e institutos jurídicos que a economia consegue realizar suas operações. Normas jurídicas estabelecem as competências do Banco Central, instituem conceitos jurídicos como “propriedade”, “contratos” e “obrigações” e criam uma estrutura judicial apta a constranger os particulares a cumprir contratos. O direito, assim, revela-se como estrutura essencial ao funcionamento da economia. E vice-versa, já que as instituições jurídicas também dependem de recursos econômicos gerados pelos agentes privados.
Inobstante a estrutura heterárquica da relação entre os sistemas sociais, tal condição somente pode ser concebida de uma perspectiva sociológica, que busca observar a própria relação entre os sistemas sob o prisma da sociologia. Inversamente, quando um sistema observa outro, enxerga-o necessariamente a partir de uma estrutura hierárquica. Assim, ao observar o direito, uma religião o concebe dentro de sua estrutura de valores – e, assim, concebe as normas jurídicas como o resultado de sua própria estrutura de descrição. O direito, assim, é concebido como fruto da “vontade de Deus” como no pensamento justeológico medieval.
Ao observarem a religião, o direito e a política também a enxergam a partir de seus próprios códigos. Do ponto de vista jurídico constitucional, a religião é uma possibilidade concretizada por normas que asseguram sua existência. A instituição jurídica da religião se desdobra individualmente, a partir da liberdade de crença e de consciência, ao passo que a proteção institucional das religiões ocorre justamente pela separação entre Igreja e Estado.
Do ponto de vista estatal, não é possível distinguir entre as várias religiões. É inegável o peculiar papel da religião católica na construção do Estado brasileiro, particularmente até a extinção do regime do Padroado pelo Decreto 119-A, de 1890. Contudo, também é certo que, a partir da promulgação da primeira Constituição Republicana, em 1891, adotou-se a separação entre Igreja e Estado, com forte inspiração do modelo constitucional norte-americano. Como resultado, a legitimação do Estado cortou qualquer vínculo anterior com a Igreja, fundando-se exclusivamente na soberania popular. Desde então, do ponto de vista jurídico-institucional, todas as religiões se tornaram iguais aos olhos do Estado, tornando-se ilegítimo privilegiar uma religiosidade em detrimento de outra.
A equiparação entre crenças religiosas e a racionalidade pública decorre de discursos como o de que o governo seguirá os “ensinamentos de Deus e ao lado da Constituição”, ilustrando o comprometimento público não apenas com o texto constitucional, mas também com o cristianismo.
Tal equiparação, contudo, é absolutamente incompatível com as premissas de uma democracia constitucional, justamente por buscar fundamentar a ação política na religião, racionalidade exógena ao sistema político.
Do ponto de vista político democrático, é impossível equiparar crenças religiosas à racionalidade pública. Debates públicos, como já sustentava John Rawls, devem ser orientados por razões acessíveis a todos os cidadãos. Afinal, é nos fóruns públicos que se discutem as normas impostas a todos, sendo democraticamente ilegítimo impor obrigações com base em razões aceitas por uma parcela dos cidadãos – ainda que seja a “maioria cristã”.
Historicamente, apenas duas fontes de racionalidade se construiram publicamente, sendo acessíveis a todos independentemente de suas crenças e doutrinas particulares: o direito e a ciência. Precisamente por isso, o direito e a ciência se vinculam, sendo particularmente aceitável impor obrigações fundadas no melhor conhecimento científico – como impor vacinação, decidir os medicamentos oferecidos no sistema de saúde, ou mesmo ensinar conteúdo científico básico nas escolas (aí incluído o darwinismo).
Precisamente por isso, tem razão o Ministro Marcos Pontes ao criticar a Ministra Damares Alves: ciência e religião não devem se misturar, particularmente nas escolas públicas. A equiparação institucional entre o discurso religioso e o científico é perniciosa, não podendo decisões estatais serem lastreadas no discurso religioso.
É certo, também, que a legitimação do discurso político com base em uma religiosidade específica em detrimento de outras também não encontra sustentação na teoria democrática constitucional. Independentemente de a maioria da população brasileira ser cristã, existem milhões de outros cidadãos que acreditam e vivem com base em valores distintos – como o judaísmo, candomblé, umbanda, espiritismo, islamismo, agnosticismo e ateísmo, entre outras formas legítimas de manifestação da fé. Não há como, legitimamente, impor o cristianismo a todos, utilizando-se do poder político para alcançar tal finalidade.
As afirmações políticas de que Deus está acima de tudo, “a igreja deve governar” e que “o Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude” revelam profunda intolerância religiosa, em afronta aos direitos à liberdade de crença e religião, bem como à separação institucional entre Igreja e Estado.
É importante destacar que o “muro” que separa Igreja e Estado não é apenas uma garantia às minorias religiosas. É, também, uma garantia às próprias maiorias religiosas de que o Estado não interferirá em suas atividades. Quando não efetuamos a devida manutenção desse muro, mesmo as maiorias começam a padecer do risco de interferência estatal desmedida. Não por menos, aliás, já surgiram notícias de que o governo – de base profundamente evangélica – tem acompanhado de perto a atividade de congregações católicas opositoras ao discurso estatal. Até a maioria pode sofrer quando o muro da separação entre Igreja e Estado sucumbe.
O Estado brasileiro é laico, não cristão
O constitucionalismo enxerga todas as religiões como igual fonte de orientação moral para os cidadãos. Daí não se segue que as igrejas cristãs não sejam relevantes politicamente. São sim! Igrejas formam importantes comunidades, das quais líderes religiosos podem dar contribuição política da maior relevância para as instituições jurídico-políticas. Não há como esquecer as contribuições do Papa Francisco, de Martin Luther King, para citar exemplos internacionais, ou de inúmeros padres e bispos que lutaram contra a ditadura militar brasileira, bem como a atuação positiva da CNBB em vários momentos de nossa história. Não há como se esquecer de Guaraci Silveira, político evangélico metodista que, nas primeiras décadas do século XX, lutou pela preservação do Estado laico.
Não se nega a importância da participação de religiosos, das mais diversas doutrinas, na política. Mas tal participação deve sempre objetivar o bem de todos, e não a exclusão das visões opostas.
O muro que separa Igreja e Estado foi construído por suor e sangue de muitas gerações. Mas muros sem reparos, como ilustrou recentemente a tragédia em Brumadinho, podem causar danos irreparáveis aos direitos de todos. E o muro que separa Igreja e Estado, no Brasil, vem apresentando cada vez mais rachaduras ao longo das últimas décadas. Para o bem de maiorias e minorias, é preciso repará-lo urgentemente. Somente assim, poderemos ser parte de uma democracia constitucional digna de respeito, construtora de uma identidade fundada no igual respeito e consideração de todos, e não na exclusão de quem ousa divergir.
Texto publicado originalmente no blog Constitucionalismo.