Não faz muito tempo, os ‘juristas’ começaram a se preocupar em estruturar a pesquisa jurídica no que se convencionou denominar de ‘pesquisa empírica em direito’. Em publicação recente do IPEA sobre o tema da pesquisa empírica em direito, Paulo Eduardo Alves da Silva e Alexandre dos Santos Cunha escreveram que “[a] pesquisa em direito no Brasil especializou-se na norma como dever ser, deixando um pouco de lado o conhecimento da norma como ser, como ela acontece na realidade” (p. 11).
Mas o que é, exatamente, o direito como “acontece na realidade”? O convite à reflexão sobre o direito a partir da empiria é, sem sombra de dúvidas, necessária. Os juristas devem aprender a refletir sobre como institutos jurídicos são de fato aplicados. Mas, muitas vezes, a reflexão sobre o sentido da pesquisa empírica no âmbito jurídico vem acompanhada de uma defesa antitética em relação às pesquisas lastreadas na hermenêutica jurídica, voltadas à sistematização e à adequada reflexão sobre o sentido das normas legais.
Normas são parte da realidade empírica do jurista
Tal movimento, contudo, me parece equivocado, por estar fundamentado em uma compreensão inocente sobre o sentido da pesquisa empírica. Para ilustrar esse raciocínio, remeto ao mesmo texto supramencionado afirma o seguinte:
O objeto e os métodos de trabalho da pesquisa empírica em direito também são sensivelmente distintos dos da pesquisa jurídica tradicional. A investigação empírica é essencialmente coletiva e interdisciplinar, bem distinta da pesquisa bibliográfica individual de gabinete. Em lugar da interpretação da norma, a pesquisa empírica investiga os meandros de sua produção e os efeitos de sua aplicação. Em vez de discutir os limites da competência que as leis atribuem a cada órgão incumbido de poder público de decisão, investiga como esses órgãos e principalmente como os seus membros pensam e atuam em concreto. Em vez de tentar buscar a norma em estado puro, conscientiza-se da relevância do contexto social em que ela opera. Do ponto de vista operacional, além da pesquisa bibliográfica, o pesquisador empírico se vê constantemente envolvido em rotinas burocráticas estranhas ao seu meio, elaborando propostas de trabalho, negociando termos de referência, contratando projetos, desenhando e executando atividades de campo, consolidando e analisando dados ou elaborando relatórios, até mesmo a sua rotina profissional é distinta. A própria profissionalização da pesquisa, fenômeno recente e vital para a pesquisa empírica, nunca foi uma condição para a produção dogmática tradicional em direito no Brasil.
De fato, se a maior parte das ‘pesquisas jurídicas’ se estabelece em torno da interpretação das normas jurídicas, por outro lado, é certo também que a interpretação das normas jurídicas é a atividade central do jurista. Ainda que existam elementos sociológicos, econômicos, antropológicos e históricos a serem estudados, parte substantiva da ‘realidade empírica’ com que se debruça o pesquisador em direito diz respeito ao modo pelo qual as normas jurídicas são interpretadas.
Por isso, não me parece razoável estabelecer a pesquisa empírica em direito como antitética em relação à pesquisa tradicional. Mais interessante seria introduzir novas ferramentas de análise empírica aos trabalhos hermenêuticos e filosóficos tradicionalmente associados à pesquisa jurídica.
Nesse sentido, Ian Robinson e Francis John introduzem o capítulo destinado à pesquisa qualitativa em direito, da obra Research Methods for Law, referindo-se às pesquisas doutrinárias como modalidades qualitativas de pesquisa empírica em direito. Seguindo Epstein e King, os autores sustentam que o elemento central de uma pesquisa empírica é a referência a fatos. E fatos podem ser históricos, contemporâneos, fundados em entrevistas, análises estatísticas, derivados de arquivos públicos ou… baseados na legislação e na jurisprudência.
Nessa perspectiva, a tradicional pesquisa jurídica pode, sim, se afirmar como pesquisa empírica, na medida em que lida com elementos fáticos como o conteúdo normativo da legislação, os debates jurisprudenciais ou a própria doutrina.
Esse ponto fica especialmente claro ao perceber que uma boa análise empírica lastreada na análise de dados estatísticos pode partir de uma boa consulta à legislação e à jurisprudência. Um grupo de pesquisa, por exemplo, poderia se estruturar em unidades diferentes para pesquisar um determinado aspecto da realidade estudada. Uma primeira unidade poderia se dedicar ao estudo da legislação, da doutrina e da jurisprudência. Outras unidades, por sua vez, poderiam se dedicar a identificar problemas com a interpretação corrente a partir de perspectivas sociológicas, econômicas ou políticas, bem como propor propostas hermenêuticas ou de reforma política da legislação para solucionar os problemas identificados.
Dados sem contexto significam muito pouco: e as normas jurídicas são essenciais a qualquer estudo jurídico
Dados sem contexto não significam muito. Recentemente, identifiquei problemas metodológicos sérios em estudo recente que afirmava a parcialidade da Justiça do Trabalho – e, nitidamente, porque os pesquisadores desconsideraram aspectos fundamentais da legislação, da jurisprudência e da doutrina trabalhistas. Por isso, é importante que os estudos empíricos não reduzam a compreensão dos parâmetros de interpretação tradicionais da legislação a pressupostos ingênuos, que desconsiderem a existência de uma tradição interpretativa a respeito da realidade investigada.
É evidente que a pesquisa jurídica pode se beneficiar muito pela adoção de métodos há muito desenvolvidos em outras ciências. A utilização de métodos estatísticos, entrevistas projetadas de maneira metodologicamente consistente, estudos sociológicos, abordagens antropológicas e mesmo estudos econométricos podem desvendar muito sobre a lógica operacional do direito. Mas desconsiderar o próprio objeto de estudo tradicional da ciência jurídica – a norma – como parte intrínseca da realidade estudada é um equívoco gravíssimo. Normas existem e são interpretadas por indivíduos e instituições. São, portanto, ponto de partida essencial a qualquer estudo empírico sobre o direito.
O que é a pesquisa empírica em direito?
A pesquisa empírica em direito, portanto, é qualquer investigação apoiada sobre fatos que interessem ao direito. Assim, caracterizam-se como pesquisas empíricas investigações históricas, pesquisas filosóficas que tenham por objeto a sistematização de determinados dados sobre o direito, pesquisas que objetivem demonstrar que determinada interpretação normativa é mais compatível com as finalidades jurídico-constitucionais do ordenamento do que outras. Tais abordagens sempre partem do exame de fatos concretos, e não de controvérsias fantasmagóricas metafísicas.
Evidentemente, existem pesquisas não empíricas em direito. É, por exemplo, o que Kelsen tentou elaborar em sua Teoria Pura do Direito — um modelo epistemológico de reflexão sobre o direito. Ou o que John Rawls, em sua Uma Teoria da Justiça, buscou desenvolver como metodologia construcionista no tocante à ideia da posição original. Mas o caráter abstrato de tais reflexões não é a regra dos trabalhos desenvolvidos como fruto da pesquisa jurídica.
Talvez os autores identificados como defensores da ‘pesquisa empírica em direito’ queiram destacar — e nesse ponto eu concordaria com eles — que a pesquisa jurídica precisa incorporar novos métodos de trabalho. Nesse ponto, de fato as pesquisas tradicionalmente desenvolvidas nas faculdades de direito, fundadas apenas na pesquisa bibliográfica e de jurisprudência, estão ultrapassadas. São necessárias, evidentemente, mas não esgotam as possibilidades da pesquisa jurídica.
Novas metodologias, importadas e adaptadas de outras disciplinas, permitem alargar o horizonte da pesquisa jurídica. Possibilitam encontrar novas perguntas ou desvendar novos problemas em pesquisas anteriores. Permitem questionar verdades antes inquestionáveis e que, agora, podem permitir, de fato, o desenvolvimento de um sistema jurídico mais responsivo e democrático. Mas… não podem retirar da pesquisa jurídica tradicional o rótulo de ‘pesquisa empírica em direito’.