O interesse ideológico e político por determinadas temáticas justifica a escolha de determinados temas de pesquisa e, naturalmente, o tema selecionado para estudo deve ser do interesse do estudante. Um tema pelo qual se está apaixonado naturalmente desperta a curiosidade, a vontade e o entusiasmo de se aprofundar em seu estudo.
Nos dias de hoje, em que o país está dividido entre azuis e vermelhos, é tentador utilizar a pesquisa acadêmica para sustentar sua própria ideologia, confirmar suas próprias crenças e atacar os demais. Mas será essa uma boa objetivo para a pesquisa jurídica?
Acredito que não. Ainda que a “objetividade” e a “imparcialidade” científicas tenham sido muito atacadas nas últimas décadas, simplesmente assumir que uma pesquisa deve ser orientada ideologicamente a fim de confirmar os valores do pesquisador é um erro fatal. Ainda que haja fortes elementos subjetivos em questão, é possível almejar objetividade em tempos de discursos pós-modernos relativista.
A pesquisa jurídica pode ser objetiva?
É certo que, no auge do iluminismo, a crença na racionalidade científica como motor do progresso humano justificou-se a partir do sucesso explicativo da filosofia natural em explorar com sucesso as fronteiras do universo material. De Copérnico a Newton, passando por Galileu, Descartes, Kepler, Giordano Bruno, Leibniz e Kant, entre outros pilares que destruíram os pressupostos epistemológicos do mundo medieval e construíram o pensamento moderno, a confiança na racionalidade humana passou a orientar os estudos não apenas sobre a natureza, mas também sobre o mundo social.
Muitos dos desenvolvimentos que buscaram compreender o comportamento humano e a nossa sociabilidade passaram a se fundar nos modelos de ciência delineados pelas ciências naturais. Auguste Comte, o precursor do movimento positivista no século XIX, é provavelmente o maior exemplo teórico de busca pelo desvelamento dos princípios sociais a partir de procedimentos metodológicos típicos da física, então considerada a rainha das ciências.
A valorização da objetividade e as raízes do método científico
Outros fortes exemplos desse momento epistemológico de valorização da razão, são a obra de Spencer, que buscou aplicar um enfoque evolutivo à teoria social, e a obra de Jeremy Bentham, que buscou explicar a ética e a racionalidade jurídica a partir de uma teoria matemática particular, que permitiria solucionar qualquer problema normativo a partir do princípio da maior felicidade, o utilitarismo.
Entre os cânones do pensamento positivista estão a valorização do método científico como a única forma válida de acesso à verdade, a confiança de que o único modo de conhecer os fenômenos se dá por meio da objetividade e a neutralidade do método científico.
É certo que, já no final do século XIX, um grande movimento de oposição ao uso de procedimentos típicos das ciências naturais passou a delinear a autonomia das ciências sociais em relação às demais ciências. Wilhelm Dilthey – influenciado por von Ranke – lutou fortemente contra a premissa de que apenas as explicações científicas são válidas. Recorrendo à obra de Giambattista Vico como fundamento, Dilthey argumentava que o conhecimento humanístico possibilita considerações importantes que passam despercebidas pela racionalidade estritamente científica, aptas a revelar impressões, intuições e desejos inacessíveis a uma abordagem mais objetiva.
Hegel introduziu a historicidade no conceito de racionalidade e, com o materialismo dialético, possibilitou ao marxismo desvelar aspectos objetivos da história. Além disso, suas considerações fenomenológicas reintroduziram na teoria social considerações sobre a tradição, que mais tarde desembocariam no desenvolvimento da teoria comunitarista, que reforçam o valor de elementos locais, contextuais e históricos. Mais recentemente, o movimento pós-moderno desferiu fortes críticas ao racionalismo e à ciência, valorizando aspectos de irracionalidade e afirmando a impossibilidade do conhecimento objetivo pressuposto no método científico.
Paradigmas e a construção da ciência
O século XX foi repleto de dúvidas sobre a possibilidade de extrairmos conhecimento objetivo a partir do método científico. Se Thomas Kuhn introduziu o conceito de paradigma para salientar a presença de elementos sociológicos na condução da ciência, Karl Popper sustentou veementemente a possibilidade de objetividade com sua lógica da pesquisa científica a partir da possibilidade da refutação. Se a ciência não nos leva à verdade última sobre coisa alguma, é nossa melhor alternativa epistemológica.
Susan Haack e a metodologia como um jogo de palavras-cruzadas
Entendo, com a filósofa Susan Haack, que podemos almejar um patamar mínimo de objetividade no pensamento científico. De acordo com Haack, é possível superar as críticas pós-modernas à racionalidade científica se combinarmos elementos das duas principais teorias epistemológicas – o fundacionalismo e o coerentismo. De acordo com o fundacionalismo, crenças básicas fundantes possibilitam a estruturação de um “edifício” de crenças derivadas, fundadas sobre aquela base. O coerentismo, por sua vez, compreende que, ainda que inexistam crenças básicas fundantes, é possível construir teorias a partir da coerência entre todos os seus elementos. Assim, um subconjunto de crenças dá sustentação ao restante de crenças porque todas pressupõem a coerência do sistema e retroalimentam a validade das demais.
Susan Haack propõe um modelo alternativo, baseado no que ela denomina de “analogia com um jogo de palavras cruzadas”. O cientista, ao se deparar com a evidência, age de modo similar a quem busca preencher um jogo de palavras cruzadas. A evidência, no caso, se assemelha às pistas que o jogo dá. Progressivamente, o jogador formula teorias sobre as melhores letras e palavras que se encaixam nas lacunas, de modo que estabelece rapidamente algumas palavras que servirão de base para completar as demais. As primeiras palavras poderiam ser consideradas “crenças básicas” na linha do fundacionalismo, mas ao mesmo tempo são sustentáculos da coerência do sistema, que depende do encaixe adequado de cada palavra (crença) a fim de que o retrato mais completo possível (a solução do jogo) seja desenvolvido.
A crítica de Haack à pós-modernidade
Se os pós-modernos têm alguma razão em alegarem a impossibilidade de teorias explicarem objetivamente a realidade, Haack desmonta a conclusão de que daí se segue o relativismo absoluto. Pelo contrário, é possível progressivamente construir um retrato teórico da realidade sem que se sucumba a uma perspectiva ingênua a respeito da objetividade e da imparcialidade. A questão toda se concentra na coerência que se exige do sistema teórico utilizado e do modo como ele se torna capaz de explicar adequadamente as evidências que se tem à disposição.
Pesquisar é admitir desde o início que sua ideologia pode estar errada
É comum, nas faculdades de direito, ver reflexos do discurso relativista na pesquisa jurídica. Muitos professores e estudantes propõem – equivocadamente – que não existe “verdade”, “objetividade” ou “imparcialidade” e, por isso, o aluno deve assumir desde o início sua ideologia e, a partir daí, realizar sua pesquisa.
Tal procedimento, contudo, é fonte de imenso atraso e de sectarismos que desembocam na possibilidade, em dias como os atuais, de se utilizar a pesquisa como palanque político para dar vazão a crenças que, muitas vezes, não têm qualquer suporte teórico claro, consistente, coerente e compatível com qualquer explicação razoável do fenômeno investigado.
Objetividade e imparcialidade são valores caros à pesquisa científica
Ainda que não seja possível assegurar a objetividade e a imparcialidade absolutas, daí não se segue que esses não sejam valores importantes que orientam e devem orientar a pesquisa científica. Dentro de suas possibilidades, o pesquisador deve investigar seu objeto de pesquisa e, dialogando com outras possibilidades teóricas, confrontar as razões apresentadas com as evidências à disposição a fim de construir uma análise coerente do problema de pesquisa.
Em duas palestras importantíssimas ministradas no início do século XX, o renomado sociólogo e economista político Max Weber dissecou as principais virtudes do cientista e do político. Ao tratar do cientista, Weber assinala – corretamente – que o início de toda pesquisa é a paixão. Sem a paixão pela ciência e mesmo pelo objeto de estudo, ninguém jamais terá condição de conduzir uma pesquisa adequadamente, seguindo os procedimentos adequados e revisitando pacientemente toda a literatura necessária à discussão teórica.
Mas a paixão é só o início. Não pode ser também o fim da ciência, ou a pesquisa se tornará mera reverberação de crenças possuídas antes mesmo do início de qualquer investigação científica. É preciso domar o demônio de sua paixão ideológica e entregar-se ao duro trabalho de questionar-se a si mesmo e de colocar em diálogo suas próprias premissas teóricas com marcos teóricos divergentes. E assumir, desde o início, a vulnerabilidade própria de quem pode admitir que está errado em sua hipótese inicial.
Pesquisa não é confirmação de dogmas
Por essa razão, a pesquisa jurídica precisa se sustentar sobre o diálogo transversal entre abordagens diferentes. Não pode se lastrear exclusivamente na profissão de fé do pesquisador, excluindo outras abordagens sobre o problema de pesquisa investigado. Uma pesquisa fundada apenas em uma abordagem ideológica não é pesquisa; é profissão de fé.É claro que o meio acadêmico está repleto de exemplos de pesquisas conduzidas como se fossem discussões religiosas, pouco abertas à possibilidade de abandonar suas próprias premissas.
Eu mesmo já tive um orientando (nível de graduação) que não quis, de modo algum, colocar seu enfoque – literalmente – religioso em discussão efetiva com as teorias jurídicas examinadas. Quando percebi que as confrontações teóricas não eram mais do que um simulacro para afirmar a própria pé, tentei demovê-lo do intento, explicando as características próprias da pesquisa científica. Como não deu certo e o discente insistiu em sua bandeira religiosa, não tive alternativa a não ser abrir mão da orientação.
A pesquisa deve servir para construir pontes e diálogo racional
Sei que o momento atual do país é tenso – talvez mais tenso do que em qualquer outro período posterior a 1988. Daí não se segue que possamos abrir mão de procurar investigar nossos objetos de pesquisa com a devida cautela, prudência e imparcialidade. Pelo contrário, é nesse momento de crise que a pesquisa acadêmica necessita mostrar sua força. A academia deve construir pontes, não destruí-las.
É necessário que, em um momento como esse, a pesquisa jurídica proporcione a crítica ativa – mas bem fundamentada e alicerçada em critérios epistemológicos claros – a descalabros político-ideológicos com base na racionalidade de argumentos objetivos que de fato refutem outras alternativas, e não porque estejam enraizados no sistema de crenças do pesquisador. Tal tarefa é inegavelmente difícil. Mas nenhuma pesquisa digna do nome deveria evadir-se de cumpri-la.